Ferrari F40 – a primeira grande homenagem a Enzo Ferrari

“Se Deus fosse uma máquina, certamente seria um F40”, assim afirmou Enzo Ferrari ao ver pela primeira vez aquele que seria o seu último bambino. Eis o Ferrari F40, sucessor do 288 GTO que foi construído sobretudo para assinalar os 40 anos da marca do cavallino rampante. Acabaria por resultar numa primeira grande homenagem ao criador da marca, que morreu pouco tempo depois, a 14 de agosto de 1988.

Em 1984, a Ferrari começou a desenvolver uma versão de competição superior ao 288 GTO para a famigerada categoria dos monstruosos “Grupo B” dos ralis mundiais da FIA, para competir com o Porsche 959. Contudo, em consequência dos tristes acontecimentos de 1986 – a morte do piloto de ralis finlandês Henri Toivonen e do seu navegador Sergio Cresto, e o acidente de má memória ocorrido no Rali de Portugal – a FIA decidiu abolir aquela categoria, o que deixou Enzo Ferrari numa posição delicada, já que tinha cinco exemplares preparados para correr que não se enquadravam em mais nenhuma outra competição.

Enzo Ferrari, na altura já bastante idoso e moribundo, decidiu então aproveitar a base do modelo de competição entretanto desenvolvido, mas também do 308 GTB, para produzir um novo modelo, que revelasse a mais pura essência desportiva da Ferrari traduzida em velocidade pura nunca antes alcançada por um modelo de estrada, e que fosse o mais parecido a um carro de corrida. Por outro lado, procurava ter um ajuste de contas com a Porsche que, no ano anterior, apresentou o 959, um supercarro de produção derivado do 911 concebido para as regras do “Grupo B”, tal como o 288 GTO, mas com performance e tecnologia superior, isto é, qualquer coisa como 450 cv (mais 50 cv do que o 288 GTO) produzidos a partir do motor boxer biturbo de seis cilindros, e 317 km/h (mais 11 km/h do que o 288 GTO), com a vantagem adicional de possuir um sistema eletrónico de tração integral e ajuste de altura e carga dos amortecedores. O que representava uma espécie de humilhação (não seria certamente a primeira) para Enzo Ferrari. E se o Porsche 959 representava um passo importante na evolução tecnológica dos carros desportivos, Enzo Ferrari, sabendo que os mais recentes modelos tinham um pouco mais de luxo e um pouco menos de ambiente de corrida e que isso não agradava aos fãs mais acérrimos da marca, enveredou por uma filosofia diferente: foco na velocidade por via de uma pilotagem pura, sem as ajudas adicionais que ele tanto detestava. Em suma, um Ferrari no seu estado mais puro.

Não seria a primeira vez, nem a última, que Enzo recorreria ao famoso carroçador Pininfarina para conceber um modelo seu. Mas desta feita recorre a um designer específico daquela firma de design, chamado Leonardo Fioravanti. Aproveitando a base do nado-morto 288 GTO Evoluzione, Leonardo concebeu um coupé de 2 lugares, agressivo mas eficiente, com desenho em forma de cunha e claramente orientado para a eficácia aerodinâmica, onde sobressaem o spoiler dianteiro, as entradas de ar em forma de “f-duct” na frente e nas laterais do bólide que ajudavam a manter a estabilidade a alta velocidade e uma baixa resistência ao ar, e o aerofólio traseiro em posição invertida que se une harmoniosamente à secção traseira do carro pelas extremidades da carroçaria, que juntamente com o spoiler dianteiro proporcionava a necessária força descendente na traseira para uma melhor aderência da secção traseira, sobretudo por causa da força bruta transmitida quase de modo imediato às rodas traseiras. O aerofólio traseiro tinha ainda a função de proteger a tampa traseira com orifícios, feita de acrílico da Perspex (mais leve que o tradicional vidro e mais resistente contra impactos) tal como as restantes janelas do carro e o parabrisas, da força da pressão aerodinâmica. Os painéis da carroçaria foram feitos em fibra de carbono, alumínio e kevlar, materiais exóticos que conferem baixo peso e alta resistência. Outros pormenores tornavam o carro exclusivo, tais como os faróis escamoteáveis, o logótipo da Scuderia Ferrari, o logo da designação do modelo nas zonas laterais do aerofólio, a grelha traseira retangular de calor onde se encaixavam os farolins redondos (os farolins são uma remanescência do 288 GTO), o formato extremamente radical das jantes para o seu tempo e o interior tão despido de luxos, mas antes cheio de ambiente de competição automóvel. O capô do motor envolvia toda a secção traseira do veículo, pelo que todas as “vísceras” podiam ser contempladas e apreciadas ao pormenor.

A contribuir para o baixo peso do futuro supercarro – de apenas 1100 kg, menos 60 kg que o seu antecessor – também contribuíam: a ausência de sistema de som, de maçanetas internas de abertura de portas, de porta-luvas, de acabamentos em couro ou carpetes. Aliás, o interior era tudo menos luxuoso, refletindo mesmo de modo espartano o extremo ambiente de competição. Tanto o tablier como o típico volante Ferrari foram revestidos em tecido Alcantara de cor preta, ao passo que o assento dos bancos, ou melhor, das bacquets de competição construídas em fibra de carbono, são revestidos do mesmo material, mas em cor vermelha, claramente a condizer com a tradicional cor da carroçaria (havia também a opção de revestimento do volante e dos bancos em couro). Ainda assim, para um melhor conforto, e porque o cockpit atinge temperaturas altas aquando do funcionamento do motor, o carro foi equipado com um sistema de ar condicionado, contudo apenas terem sido construídas as primeiras unidades foi acrescentada uma portinhola em cada porta para ser possível abrir os vidros laterais, já que inicialmente os vidros eram fixos (influência da competição automóvel da época). Os pedais, assim como a maneta da caixa manual de cinco velocidades, com aquela grelha de base que facilitava o engrenar das velocidades (típico da Ferrari) foram fabricados em alumínio. A direção não tinha qualquer tipo de assistência eletrónica, para uma interação mais autêntica entre Homem e Máquina em ambiente de pura adrenalina própria do mundo das corridas.

O motor, montado longitudinalmente e em posição central traseira, foi aproveitado do 288 GTO, sofrendo um aprimoramento de modo a extrair o máximo possível do seu potencial. Manteve a configuração de oito cilindros em V (V8), os dois turbos fornecidos pela japonesa IHI – uma peça por cada bancada de cilindros e cada uma ligada a uma válvula wastegate – e a injeção eletrónica fornecida pela Marelli-Weber, aumentando a sua cilindrada de 2855 cm3 para 2936 cm3, assim como o número de válvulas, de 16 para 32. Isto permitiu-lhe atingir 478 cv de potência às 7000 rpm e um binário de 577 Nm às 4000 rpm. Comparativamente ao seu antecessor, trata-se de um aumento considerável de 78 cv e, consequentemente, de 81 Nm de binário. Não só graças ao motor, mas também à eficiente configuração aerodinâmica cujo coeficiente aerodinâmico era de 0.340, a velocidade máxima passaria dos já consideráveis 306 km/h para uns já estratosféricos 324 km/h, enquanto a aceleração de 0 a 100 km/h melhorou dos 4.9 s para 4.1 s. Para alimentar o potente e guloso motor, o depósito de gasolina, herdado do 288 GTO, tinha capacidade para 120 litros. Unidos ao motor estavam, não dois, mais sim três tubos de escape, sendo que os dois tubos laterais canalizavam os gases de escape provenientes das duas bancadas de cilindros, ao passo que o escape central canalizava os gases provenientes das wastegates dos turbocompressores. O baixo peso do aliado à potência bruta proporcionava ao bólide uma baixa relação peso/potência de apenas 2.3 kg/cv.

Dinamicamente, o comportamento, pouco neutro mas sobejamente eficaz, seria ajudado também pela suspensão dupla de braço, também ela herdada do 288 GTO, embora com adaptações de modo se ajustar à baixa distância do veículo ao solo, que poderia ser ajustada manualmente a fim de ser aumentada, caso fosse necessário. As rodas eram compostas por jantes de 17” forjadas em alumínio, com desenho em forma de estrela de cinco pontas e largura de 8” à frente e de 13” atrás, sendo calçadas respetivamente com pneus de tamanho 245/40 R17 à frente e 335/35 R17 atrás. Os travões eram compostos por discos ventilados de 330 mm, mordidos por maxilas potentes q.b. para proporcionar uma travagem eficaz, ainda assim sem qualquer assistência eletrónica, à semelhança do que acontece com o sistema de direção.

Finalmente, a 21 de julho de 2017, era apresentado o resultado final do que seria, de facto, o primeiro carro da linhagem de supercarros da Ferrari. Recebeu a designação de F40, cuja sigla é uma celebração dos 40 anos da firma de Maranello. Rezam as crónicas que, quando o supercarro foi apresentado, o público em geral não se impressionou, sobretudo por julgar que a Ferrari teria encontrado uma maneira fácil de ganhar dinheiro às custas do sucesso do 288 GTO e que tal representava uma mera resposta ao ultra tecnológico Porsche 959, sem grande evolução tecnológica. Nessa altura, Enzo Ferrari padecia já de uma grave doença crónica renal e a sua morte estaria bastante próxima, o que fez os especuladores preverem um aumento do preço dos carros da marca, principalmente do F40. Il Commendatore veio a morrer no ano seguinte, quando a produção do superdesportivo em massa tinha já arrancado. Ao todo foram produzidas 1311 unidades entre 1987 e 1992.

Quanto ao resultado final – o último supervisionado pelo fundador – o objetivo foi atingido com boa margem, já que bateu o rival da Porsche sem apelo nem agravo. Não sendo necessariamente melhor do que este, cumpriu o objetivo de ter um comportamento inesquecível em estrada, mais emotivo e menos monótono, mais visceral e menos superficial. O F40, não sendo propriamente o primeiro GT da história da Ferrari, resgatou os valores de alta desportividade defendidos por Enzo que perduraram até aos dias de hoje, marcando o início da linhagem dos carros mais velozes da gama, continuada sucessivamente pelo F50, pelo Enzo e, por último, pelo LaFerrari, cuja sucessão estará, à partida assegurada. Em termos de valor de mercado, e apenas para se ter uma ideia, o exemplar que pertenceu ao músico Eric Clapton foi vendido por 1 milhão de euros…

Na recente exposição “Supercarros”, decorrida no Museu do Caramulo, gozei bem a oportunidade de ver pela primeira vez ao vivo esta autêntica peça de arte em excelente estado de preservação. Infelizmente não pude ver ao vivo o LaFerrari, já que naquele dia aquele animal foi dar um passeio com o dono. Mas falarei dele aqui no blogue brevemente…

Davide Cironi, o editor do canal de YouTube em nome próprio e do website italiano”Drive Experience”, mostra como se conduz o F40 de modo agressivo em plena estrada. Se ver o F40 andar ao vivo é complicado, ao menos deliciemo-nos com esta performance estonteante num vídeo que tão bem exemplifica o prazer de conduzir uma máquina infernal que ainda é “o pai dos supercarros modernos”. Terei eu alguma vez nesta vida o prazer de o pilotar em plena estrada?…