A segunda geração do Renault Clio tinha sido lançada em 1998, oito anos depois da primeira. Concebida de raíz para servir de utilitário com forte potencial para a desportividade à semelhança da geração anterior, as suas formas tornaram-se mais redondas, ao passo que se verificou uma evolução lógica em termos de dimensões e performance, com o objetivo de não perder a corrida no capítulo de value for money face a concorrentes tais como o Ford Fiesta ou o Volkswagen Polo. Foi esta geração que colocou a Renault como a marca mais vendida em Portugal, sendo que o Clio é atualmente o mais vendido no seu segmento na Europa (atual segmento B). Oficialmente, o Renault Clio II foi fabricado em três fases (com dois facelifts de design pelo meio) e ainda numa última fase denominada “Storia” (esta em simultâneo com a Fase 1 do Clio III). Aliás, esta geração foi mesmo a que envolveu mais países na sua construção: França, Turquia, Brasil, Eslovénia, Colômbia, México e Argentina. Efetivamente, a geração II foi a mais duradoira em termos comerciais, pois a última unidade desta geração foi produzida na Colômbia em apenas 2017, ou seja, 19 anos depois de produzida a primeira unidade em Flins (França). Para muitos, o Renault Clio II é considerado o melhor Clio de sempre.

Para mim e restante família, esta geração é muito especial, ainda mais porque temos não um, mas dois exemplares, embora de fases diferentes, ambos equipados com o fabuloso motor 1.2 a gasolina de 58 cv de potência com injeção multiponto (o famoso quatro cilindros em linha de código D7F). O exemplar mostrado como teaser no seguinte vídeo patente no canal de YouTube deste blogue (filmado no outono de 2018) foi dos primeiros exemplares fabricados e tem já mais de 350 mil kms percorridos sem que o motor tivesse sofrido qualquer problema mecânico. O outro exemplar é de Fase II. A qualidade dos materiais no interior é apenas básica, contudo a robustez de construção da carroçaria e o seu comportamento em estrada é ainda o principal motivo porque tantos ainda utilizam o Renault Clio II no dia a dia até hoje, especialmente em Portugal. Todos os exemplares deste modelo construídos em 1998 têm já potencial para se tornarem Futuros Clássicos (de acordo com a ACP Clássicos), dependendo da sua exclusividade. Como é o caso deste que, sendo a versão mais básica de todas (sem direção assistida), consegue comportar-se como um verdadeiro Alpine A110, daí que gosto de lhe chamar de “Renault Clio Alpine”. Acerca deste menino, prometo uma surpresa para breve…
Em termos de versões desportivas, se na primeira geração foram fabricadas as versões 1.8 16V e 2.0 Williams (esta última para comemorar o sucesso de vitórias na Fórmula 1 em parceria com a Wiliiams), respetivamente com potências de 137 cv e 150 cv, já na segunda geração foi fabricada nas duas primeiras fases a versão 2.0 Renault Sport (com 172 cv no Fase I e com 182 cv no Fase II). Contudo, a Renault foi ainda mais longe…
O Renault Clio II foi concebido de facto para ter motor transversal à frente com transmissão ligada às rodas dianteiras, tal como o Clio original e as gerações seguintes até à presente quinta. Acontece que, aquando do lançamento do sucessor do original, a Renault andava fortemente envolvida no desporto automóvel (situação que perdura até hoje), apostando fortemente em troféus monomarca regionais e no troféu monomarca europeu através da Renault Sport, departamento de competição que sucedeu à antiga Renault-Alpine, por sua vez resultado da aquisição da Alpine fundada por Jean Rédélé. Certamente muitos ainda se lembram da vitória da Renault-Alpine nas 24 Horas de Le Mans de 1978. A Renault Sport sentiu necessidade de substituir o espartano Renault Spider que corria nos populares troféus monomarca por um modelo que fosse mais capaz de impulsionar o sucesso comercial da marca, uma vez que o Spider de estrada esteve muito longe do sucesso comercial desejado pela marca. Aproveitando o lançamento do Clio II, a Renault Sport pegou na carroçaria deste modelo e, inspirando-se claramente no conceito do Renault 5 Turbo (e Turbo 2), acrescentou vias largas à carroçaria de base e, entre outras coisas, colocou um motor 3.0 V6 atmosférico oriundo do Laguna que foi concebido em conjunto com o grupo PSA (Peugeot-Citroën), que sofreu alterações importantes para poder estar completamente apto para corridas de sprint e produzir uns assustadores 285 cv de potência, transmitidos às rodas traseiras. Dada a excessiva cilindrada para um carro de capô achatado, o motor foi colocado em posição central-traseira, no lugar dos bancos traseiros. Nascia assim o espetacular Renault Clio V6, que iria estrear-se na nova competição Clio V6 Trophy, que estreou em 1999 e durou até finais de 2003 com elevados níveis de sucesso.
Mas a Renault não se ficou por aqui. Pegando no conceito do Clio de corridas, resolveu criar um concept de estrada, apresentando-o no Salão de Paris de 1998 a fim de avaliar a reação do público, justamente no ano do centésimo aniversário da marca. De facto, este Clio só iria ter dois lugares sentados, e o tal motor V6 em posição central-traseira, cuja potência e binário seria transmitidos às rodas de trás. Sendo uma homage ao Renault 5 Turbo (e Turbo 2), o nível de potência prometido elevaria o seu estatuto a um invulgar nível de “superdesportivo utilitário”. Ou uma espécie de hot hatch poderosíssimo para os padrões de então, que transforma um simples utilitário num monstro. De tal forma que, caso passasse à produção, seria um clássico logo à nascença. Já deu para perceber o que aconteceu depois…
A reação do público foi tão positivamente avassaladora que a Renault encomendou um estudo de viabilidade de produção à conceituada TWR (Tom Walkinshaw Racing), que garantiu mesmo que seriam assegurados os padrões de qualidade, segurança e comportamento dinâmico exigidos pela marca francesa. A Renault decidiu, após resposta positiva, encarregar a TWR de produzir o modelo em série limitada, cujo aspeto exterior sofreu poucas alterações (as jantes definitivas seriam diferentes das apresentadas no concept, sendo mais desportivas). Tal como a produção dos exemplares convencionais do Clio, o Clio V6 também teve duas fases de produção em termos de design, com aumento significativo de performances – e um melhor temperamento – no Clio V6 Fase II em relação ao Fase I. Cada unidade foi produzida de forma manual e numerada. Salvo erro, esta foi a primeira versão de um Clio a receber jantes de cinco porcas!

Em 2001 começava a produção do Clio V6 Fase I. Como já referi anteriormente, o motor 3.0 V6 foi colocado em posição central-traseira. O motor produzia 230 cv de potência às 6000 rpm e um binário de 300 Nm às 3750 rpm. Comparando com a versão de pista, claramente a versão de estrada produz algumas dezenas de cavalos a menos, para garantir maior fiabilidade e consumos mais comedidos. Ainda assim, este nível de potência é assegurado pela colocação de novos pistões no motor derivado do Laguna – ao qual já estava associada a tecnologia DOHC de 4 válvulas por cilindro (24 válvulas no total) – concebidos para suportar uma taxa de compressão superior, ao passo que as tomadas de admissão foram alargadas, permitindo um aumento do limite de rotações para as 7100 rpm. Além do mais, o cantar do motor de seis cilindros em V revelou-se simplesmente melodioso, sobretudo quando ecoava no interior do carro, sendo bastante distinto dos convencionais motores de quatro cilindros. A transmissão às rodas traseiras era assegurada por uma caixa manual de seis velocidades, que derivou da mais convencional caixa de 5 velocidades com as devidas adaptações no que respeita aos mecanismos internos de controlo (inteiramente novos). Para uma melhor entrega de potência ao asfalto e apesar de não estar equipado com controlo de tração e a distância entre eixos ser curta (ainda que um pouco maior que as versões convencionais), o Clio V6 estava equipado de série com um diferencial autoblocante, assegurando uma condução entusiasmante e muito envolvente (que pode incluir drifts controlados) mas segura mesmo nos limites de aderência, até porque a ausência de turbo torna a entrega de potência mais linear e progressiva. Com tudo isto, e um peso bruto cifrado em 1545 kg, o bólide acelerava de 0 a 100 km/h em 6,4 segundos, atingindo uma velocidade máxima de 237 km/h.
Exteriormente, o Clio V6 mostra a sua personalidade graças aos apêndices aerodinâmicos herdados da versão de corrida Trophy, sendo eles os para-choques, as ponteiras de escape, os ailerons dianteiros e traseiros, as entradas laterais de ar para a refrigeração do motor, as cavas das rodas e os proeminentes paineis laterais embutidos na carroçaria normal, cujas restantes partes são herdadas da versão Renault Sport 172. Em termos de dimensões, o carro era 171 mm mais largo, 66 mm mais baixo e 38 mm mais comprido na distância entre eixos, enquanto que as vias dianteira e traseira eram, respetivamente, 110 mm e 138 mm mais largas. Correspondendo às larguras das vias, os pneus da frente e de trás tinham diferentes medidas – 205/50 ZR17 no eixo dianteiro e 235/45 ZR17 no eixo traseiro – assentes nas jantes desportivas OZ Superturismo de 17 polegadas. O sistema de travagem era poderoso e condizente com o tamanho das jantes, sendo composto por discos ventilados de 330 mm à frente e 300 mm atrás, mordidos por pinças da AP Racing de quatro êmbolos. O chassis levou elementos de reforço importantes de modo a que o carro não perdesse qualquer integridade estrutural tendo em conta o aumento substancial de performance para níveis quase estratosféricos para um simples utilitário. O sistema de suspensão era exclusivo da versão V6, sendo que à frente era do tipo McPherson e atrás com uma configuração independente multibraços (multilink). A barra estabilizadora dianteira foi herdada do Clio V6 Trophy.
No geral o interior mantém praticamente o mesmo aspeto visto no Clio Renault Sport 172, com as diferenças marcadas pelo aumento da altura da avalanca da caixa de velocidades (de base mais elevada), pelo revestimento prateado do separador central onde assenta a dita alavanca, pelos pedais de alumínio exclusivos e pela ocupação do motor no local dos habituais bancos traseiros, cuja área está devidamente protegida por um caixilho próprio com dupla tampa, cuja abertura depende sempre do acesso ao mesmo pela porta traseira da habitual bagageira das versões convencionais. Ou seja, à parte destes detalhes exclusivos do V6, em termos de habitabilidade nos bancos da frente não há qualquer diferença para qualquer outra versão Clio; tal como no Clio Renault Sport 172, o tecido Alcantara marca presença em quase todo o aro do volante, na zona central dos bancos (onde está presente a inscrição “Renault Sport” em modo de costura) e na zona central das guarnições das portas laterais; a base do volante e a restante área dos bancos é revestida em pele; até o painel de instrumentos de fundo branco é exatamente igual ao do Clio Renault Sport 172, assim como o punho da alavanca da caixa de velocidades, redondinho como a mão direita gosta… Em suma, o interior faz-nos lembrar de que este modelo é de facto um Clio genuíno.
O Clio V6 estava ainda munido de sistema de climatização com ar condicionado, vidros escurecidos, para-brisas com refletor de calor e um sistema “Radiosat 6000” com carregador de 6 cd’s. Entre os vários sistemas de segurança ativa e passiva, destaque para o complexo de airbags e para o sistema de travagem ABS com EBD (distribuição eletrónica da força de travagem). A completar o ramalhete, é de salientar o espaço de bagageira cujo compartimento estava colocado sob o capô dianteiro (no lugar dos convencionais motores de quatro cilindros em linha), com capacidade para 67 litros de bagagem, bem como o restante espaço de bagageira atrás que, ainda assim, tinha capacidade para 45 litros reservados para utensílios adequados à sua utilização em pista. Apesar de melhores atributos face ao Clio V6 Fase I, a verdade é que os consumos aumentaram, ainda que ligeiramente, bem como as emissões de CO2, o que é perfeitamente compreensível face ao aumento significativo de potência.
Até agosto de 2003, a TWR produziu um total de 1631 exemplares do Clio V6 Fase I, 256 unidades das quais com volante à direita. Nesta altura, as vendas do Clio II Fase II andavam de vento em popa e a exclusividade do Clio V6, que motivou tempos de espera longos, não esmoreceu a constante procura por esta versão tão brutal como esta. Por isso, a Renault decidiu produzir o Clio V6 Fase II a partir daqui e até 2005, desta vez na sua fábrica de Dieppe (onde antigamente eram produzidos os clássicos da entretanto renascida Alpine, que aí produz o atual A110). No total foram manufaturadas um total de 1309 unidades desta série, 354 das quais com o volante à direita. Ou seja, sobretudo para os lados de UK, o modelo em si teve uma popularidade deveras significativa.

Basicamente, o Clio V6 Fase II mantinha todos os atributos desportivos do Fase I, mas com várias modificações e melhoramentos. Refletindo o design de base do Fase II, a Renault Sport aproveitou (e bem) para tornar o conceito visual mais agressivo e, contudo, mais atraente, sobretudo pela adição de novas entradas de ar e jantes ainda maiores, agora de 18 polegadas. A cor de base passaria a ser o azul “Bleu de France”, cujo tom era semelhante ao utilizado pelo antigo Renault 8 Gordini. Contudo, caso o cliente desejasse, podia por exemplo escolher de uma nova gama de cores, incluíndo a variante Liquid Yellow (J37) que passou a identificar de base os modelos desportivos produzidos pela Renault Sport nos anos seguintes com a designação “R.S.”.

A modificação mais importante operou-se no sólido motor V6 e na transmissão às rodas traseiras. Foram colocadas novas cabeças nos cilindros e um novo sistema de admissão mais eficiente e desimpedido. Por outro lado, as relações de transmissão ficaram mais curtas. Assim, a potência máxima aumentou para 255 cv (aumento de 25 cv), agora entregues às 7150 rpm, mantendo-se contudo o mesmo valor de binário, mas agora entregue num valor mais alto de rotações, agora às 4650 rpm. A velocidade máxima também aumentou significativamente, para uns ainda mais expressivos 246 km/h (aumento de 11 km/h) e a aceleração de 0 a 100 km/h é mais rápida, cifrando-se agora nos 5,8 segundos. Para quem pretendia uma utilização no dia a dia de um modelo tão radical, esta nova versão é claramente melhor que a anterior, cujo comportamento era mais brusco e cruel, pelo que o carácter do Clio V6 Fase II tornou-se mais forte e, ao mesmo tempo, mais civilizado, o que fez aumentar a sua versatilidade e, portanto, a sua manobrabilidade (esta reforçada pela melhoria no que respeita ao número de voltas do volante de topo a topo, de 2,75 para 2,8). Outro aspeto que reforça a melhoria do seu comportamento está relacionado os apêndices dinâmicos no chassis: a distância entre eixos aumentou 33 mm; a via dianteira ficou 23 mm mais larga; por fim, a suspensão ficou mais firme e recebeu novos batentes dos amortecedores, braços de guiamento maiores e sub-chassis reforçados. Em termos genéricos, o Clio V6 tornou-se de facto mais desportivo, mas mais civilizado e até mais fácil de conduzir nos limites de aderência.
O grande ponto negativo do Clio V6 Fase II é o aumento do consumo combinado de gasolina face ao Clio V6 Fase I, ainda que seja ligeiro (aumento de 11,2 l/100 km para 11,9 l/100 km). Aliás, o consumo em cidade do Fase I já era abusivo (14,9 l/100 km), mas no Fase II agravou-se para os 15,5 l/100 km. Contudo, tais valores estão em linha para uma versão claramente vocacionada para a condução desportiva e em track days e não para a condução em cidade, ao contrário das versões convencionais. Podia ser menos guloso? Talvez…

O Renault Clio V6 é o melhor carro desportivo alguma vez construído? É óbvio que há melhores, mais bem apurados e mais excitantes de conduzir. Mas não teve rivais à altura do seu conceito e foi um excelente balão de ensaio para o que a Renault Sport iria fazer nos tempos seguintes, e prova disso foi o feedback positivo por parte da imprensa especializada.
Contudo, a Renault não iria repetir o conceito nas gerações seguintes do Clio, mas em vez disso iria fazer uma nova experiência, mais duradoira, desta feita com o hatchback Mégane (segmento C) que começou no primeiro Mégane R.S. (geração II do Mégane) e culminou no atual e radical Renault Mégane R.S. Trophy-R de 300 cv, que ironicamente simbolizou o final de uma era e da própria Renault Sport, que mudará de nome para… Alpine Cars. No essencial, a estrutura desportiva mantém-se como está, contudo os próximos modelos desportivos da marca Renault serão chamados de Alpine, acompanhando o atual A110 que terá sucessor. Todos os futuros Alpine serão puros desportivos elétricos.
Quanto ao Clio V6, ou aos exemplares que sobreviveram para contar a história, não restam dúvidas de que tais não deixam ninguém indiferente e são a prova de que a engenharia francesa não fica muito atrás da engenharia alemã. Há 20 anos que a Renault fez a magia que revolucionou o mundo dos carros desportivos franceses. Em última análise, o Renault Clio V6 representou a mais extrema ousadia desportiva de um utilitário.