Chevrolet Corvette C8 – finalmente, o motor no sítio certo!

2020 Chevrolet Corvette Stingray

A história comercial do Corvette, colegialmente conhecido em terras do Tio Sam como “Vette”, começa poucos anos depois do fim da Segunda Grande Guerra, em 1953, como resultado de um projeto da General Motors (GM) e numa época em que finalmente as memórias turbulentas do maior conflito armado se tinham dissipado. Numa altura em que a GM gozava de um certo fulgor financeiro, a marca fundada em 1911 por Louis Chevrolet e William C. Durant começou a conceber um novo carro desportivo de linhas algo invulgares. O nome do futuro modelo, Corvette, foi inspirado no mesmo termo nominativo que designa os pequenos navios de guerra que fizeram história justamente na Segunda Grande Guerra, no que foi uma clara afirmação do orgulho americano pela vitória final e consequente supremacia económica.

Concebido como um convertible (descapotável), o futuro ícone que viria a tomar o topo da hierarquia de carros rápidos e potentes desde praticamente o início da sua história – substituindo o malfadado Nash-Healey – adotou uma configuração de “dois lugares, motor à frente, tração traseira, duas portas, e dois passageiros”, tendo sido apresentado no Salão Automóvel GM Motorama de 1953. Ao longo de sete gerações – C1, C2, C3, C4, C5, C6 e C7 – de 1953 até 2019, o Corvette foi sistematicamente aumentando a sua performance, sobretudo pela evolução do motor V8 em potência e cilindrada e pela distinta carroçaria em plástico (ocasionalmente em fibra de vidro ou material compósito), o que lhe permitiu granjear uma reputação invejável junto de vários construtores europeus de topo e da sua grande rival conterrânea Ford, ao ponto de conseguir desfrutar de grandes sucessos em corridas de resistência nos dois lados do Atlântico (sobretudo em Daytona e Le Mans); certamente vos recordareis, por exemplo, da vitória do nosso compatriota Pedro Lamy nas 24 Horas de Le Mans de 2012, na classe LMGTE-Am com um Corvette C6 ZR1, ou ainda da histórica vitória do Corvette C7R na edição de Le Mans de 2015 na classe LMGTE-Pro…

A partir da geração C2, denominada Sting Ray, o ícone americano acrescentou a configuração “coupé” que se perpetuou nas gerações seguintes, já com a designação alterada para Stingray. Sempre perseguindo os seus rivais, cada geração adotou um design distinto de acordo com a época em que foi construída, pese embora o seu grau de sofisticação tecnológica fosse algo inferior. Ao invés disso, o seu carácter de muscle car granjeou uma enorme legião de fãs, o que pesou no facto de ter recebido o título de “America’s Sports Car”. Em termos evolutivos, se a primeira geração teve uma gama de potências entre 152 cv e 364 cv (a única com a versão básica de motor atmosférico de seis cilindros em linha), a geração C7 atingiu uma gama bem mais alta, entre 466 cv (versão básica Stingray) e 765 cv (na mais poderosa versão ZR1), solidificando-se como um supercarro de pleno direito. Nesta última geração, ainda em comercialização, o motor utilizado foi o clássico V8 GM com cilindrada de 6.2 L, seja na versão puramente atmosférica, seja na versão com compressor de ar.

Em comparação, o Porsche 911 GT2 (991.2) só foi capaz de atingir 700 cv, mas com um motor flat-six biturbo de 4.0 L de cilindrada, o que em termos de eficiência energética significa… melhor engenharia dos alemães! Contudo, em termos absolutos, o Corvette C7 ZR1 saiu-se melhor, para além de ter sido o mais veloz Corvette de todos os tempos, com uma velocidade de ponta de 341 km/h, batendo o Porsche 911 GT2 (991.2) por uma pequena margem. Ora, se agora compararmos o Corvette ZR1 com o Ferrari 488 Pista… a dúvida persiste devido ao facto da Ferrari declarar uma velocidade máxima de mais de 340 km/h, com um V8 biturbo de 3.9 L.

Seja como for, o Corvette C7 ZR1 será, indiscutivelmente e para sempre, o Corvette com motor dianteiro mais potente e mais sofisticado – com caixa automática de oito velocidades – alguma vez construído pela Chevrolet, e o mais potente de sempre do mundo com motor V8 debaixo do capô dianteiro. Hum… Mas não haverá mais nenhum Corvette no futuro? Claro que sim… mas não mais com motor dianteiro.

O quê??? Como assim?

Pela primeira vez na história da Corvette – no fundo, uma marca própria dentro da marca Chevrolet – haverá um modelo com posicionamento inédito do motor em zona central traseira. Uma autêntica heresia face ao tradicionalmente estabelecido na doutrina da “religião” nascida nos States. Um pecado mortal para a comunidade dos petrolheads nativos. Mas haverá mesmo algum fundamento? Sim, de facto. É que a ideia original do Corvette, da autoria de Zora Arkus-Duntov, contemplava justamente o posicionamento do motor V8 naquela posição logo atrás dos dois bancos dianteiros, contudo a GM não quis avançar com a ideia com receio de que os custos de desenvolvimento galopassem e ameaçassem a sustentabilidade financeira do projeto. Por outro lado, os americanos estavam, no geral, pouco recetivos à ideia de um motor atrás das suas costas, até porque isso seria muito… europeu. O problema é que, quando a primeira geração Corvette foi estreada comercialmente, esta esteve sob a ameaça de um fracasso tal que poderia acabar prematuramente a carreira do convertible desportivo, mas foi graças à perseverança da GM, e ao restyling do modelo original (com uma boa dose de marketing) que finalmente o público aderiu em força, pelo que o Corvette pode sobreviver e prosseguir a sua viagem no tempo… E valeu a pena, porque o novo Corvette C8 recebeu já dois prémios caseiros para 2020: o “North American Car Of The Year” e o “Motortrend Car Of The Year”. Mas pode receber mais prémios, ainda…

A nova geração Corvette, a C8, foi especialmente concebida para lutar com armas iguais com a Ferrari e a Porsche, logo a começar pela versão básica Stingray, com design inspirado no desporto automóvel e na aeronáutica. Recebe o mais recente aprimoramento da herança de uma tecnologia GM que dura há várias décadas, aliás… há já mais de 100 anos! Para quem não sabe, a primeira marca a receber um motor V8 foi um Cadillac, em 1914; nessa altura, a Cadillac já estava sob a alçada da GM. Continuando: o novo modelo recebe a mais recente evolução do bloco atmosférico V8 6.2 L em alumínio, com a potência elevada para um patamar entre os 497 cv e os 502 cv, sendo que o valor máximo de potência (com binário máximo de 637 Nm) adquire-se com a inclusão do pack de performance Z51 Performance Package, que não se resume só ao aumento de potência do motor. A velocidade máxima (sem o já referido pack de performance) é de 312 km/h.

O facto de o bloco de alumínio se encontrar em posição central traseira permite aproximá-lo o mais perto possível do chão, conferindo ao carro um centro de gravidade mais baixo. Tecnologicamente, para além do notório aumento de potência (com aceleração de 0 a 100 km/h seguramente em 3 segundos ou ligeiramente menos) – conseguido graças ao aumento do diâmetro de entrada do coletor da admissão que passou para os 87 mm, coletor este que tem oito canais de comprimento igual de 210 mm de comprimento para maximizar o binário e o fluxo de ar para cada cilindro – a lubrificação é agora feita em cárter seco e o sistema de escape, com duas ponteiras duplas em alumínio, está otimizado para o aproveitamento da potência mas também para a diminuição de emissões de dióxido de carbono, com resultados extremamente positivos para o refinamento do barulho característico do motor. O sistema de refrigeração foi, naturalmente, melhorado de modo a responder à exigência do posicionamento central traseira do motor. Pela primeira vez, o motor está acoplado a uma caixa automática de dupla embraiagem com oito velocidades, desenvolvida em conjunto com a Tremec, com um seletor de transmissão eletrónica que elimina a conexão mecânica entre a alavanca da caixa e a transmissão, o que representa um significativo salto tecnológico.

Tal como referiu Mark Reuss, o atual presidente da GM: “O tradicional veículo de motor dianteiro atingiu o seu limite de performance, havendo necessidade de um novo paradigma. Em termos de conforto e divertimento, é ainda um Corvette, mas a sua condução é melhor que qualquer outra geração da história do Corvette. Os nossos clientes ficarão abismados com o nosso foco pelo detalhe e pelo desempenho geral.”. Nunca um Corvette foi tão rápido e tão prático. O design do C8 não é uma mera evolução do modelo anterior; o comprimento do veículo face à geração anterior aumentou consideravelmente, assim como a sua distância entre eixos, sendo isso notório à primeira vista. Sem esquecer que o chassis é notoriamente mais rígido que na geração anterior… Ao contrário do que se poderia julgar, o Corvette está mais Corvette! Tudo está orientado para a performance, desde a mecânica até ao design (exterior e interior), com os engenheiros a terem finalmente margem de manobra para acrescentar níveis de luxo e de tecnologia nunca antes alcançados. O posicionamento do condutor e do passageiro do lado sai claramente beneficiado pela configuração do cockpit que aproveita ao máximo o baixo centro de gravidade do veículo; com isso, a distribuição de massas é bem mais uniforme que na geração anterior. A nova configuração possibilitou, entre outras coisas, que o tejadilho voltasse a poder ser removível, sendo depois acomodado num compartimento traseiro localizado por detrás do motor que pode transportar ainda outros pequenos objetos, bem como a criação de um compartimento de mala na zona do capô dianteiro. Por outro lado, foram acrescentadas duas entradas laterais de modo a otimizar a refrigeração do motor, e as entradas de ar frontais ficaram mais pronunciadas, como uma espécie de evolução do Corvette C7 ZR1. Tantos os faróis dianteiros como os farolins traseiros são iluminados por sistemas de “Full LED”, ajudando a enfatizar a modernidade do design típico de um Corvette. A auxiliar no comportamento aerodinâmico do C8 Stingray, encontra-se uma verdadeira asa traseira de baixo perfil, com a mesma cor da carroçaria, o proeminente difusor traseiro e o splitter dianteiro que direciona o ar para as entradas de ar dianteiras. As portas laterais, o capô e a escotilha estão completamente escondidos como se não existissem, uniformizando o design escultural. Para uma melhor dissipação do calor proveniente da atividade do motor, o óculo traseiro é rodeado por sete aberturas de ventilação, exclusivamente na versão de carroçaria coupé.

Para tornar o comportamento do novo Corvette mais eficaz, a suspensão do Corvette, com configuração do tipo double wishbone em ambos os eixos, contém assentos de mola com roscas ajustáveis manualmente, podendo ser equipada com o inovador sistema “Magnetic Ride Control 4.0”, o qual lê melhor a estrada, fornecendo dados mais precisos através de acelerómetros montados na suspensão, de modo a adaptar a suspensão ao tipo de piso; assim é garantida a melhor eficácia de condução possível em todas as condições. A suspensão adaptativa está também munida de um sistema que levanta automaticamente o eixo dianteiro em cerca de 40 mm em apenas 2,8 segundos, a fim de não raspar com essa zona em lombas ou entradas de garagem, podendo funcionar em velocidades até cerca de 40 km/h, com possibilidade do sistema memorizar até 1000 pontos críticos através do sistema GPS instalado no veículo. Quanto aos travões, estes são de grandes dimensões, com a menção “Z51” nas pinças da versão com o Pack Z51 Performance, contendo um sistema de arrefecimento aprimorado e ainda um sistema de refrigeração do eixo dianteiro. As rodas são compostas por jantes desportivas maquinadas de cinco raios com o badge da Corvette no centro delas, de tamanho 19” à frente e de 20” polegadas atrás, sendo calçadas com pneus Michelin Pilot Sport de tamanho 245/35ZR19 à frente e de tamanho 305/30ZR20 atrás.

Design, luxo e tecnologia são temas dominantes do interior do novo Corvette Stingray. Nem parece que se trata de um carro americano! No interior sobressai a enorme consola central que proporciona duas zonas de segurança distintas, uma para o condutor e outra para o passageiro, com especial ênfase para o papel do condutor. Na extremidade da consola central existe uma enorme fila de botões que comandam diversas funções de climatização, o que juntamente com as aberturas finas de ventilação cria um interior baixo e espaçoso, minimizando o painel de instrumentos que é inteiramente digital e apresenta uma excelente definição gráfica, juntamente com o ecrã de infoentretenimento de 12 polegadas, cujo sistema, ao nível dos melhores, é totalmente novo e bem mais intuitivo que o anterior, destacando-se bem graças às dimensões reduzidas do novo volante Corvette de dois raios, podendo ainda ser comandado ao toque dos dedos ou por botão rotativo, ao estilo dos que estão presentes em carros da Mercedes e da Aston Martin. Uma enorme porção do interior (volante incluído) é forrada de modo artesanal em couro de soberba qualidade, conjugando com pequenas porções revestidas em fibra de carbono e metal polido, cujo aspeto pode conter seis padrões de cor à escolha: “Jet Black”, “Sky Cool Gray”, “Adrenaline Red”, “Natural/Natural Dipped”, “Two-Tone Blue” e “Morello Red”. Os bancos, de design focado especialmente para o conforto e para o excelente apoio lateral, apresentam três configurações à escolha: “GT1”, com acabamento em couro Mulan, que privilegia o conforto e oferece um bom apoio nas curvas; “GT2”, mais inspirada nas corridas, com guarnição em fibra de carbono, uma inserção de couro Napa, almofadas de couro Mulan, encosto pintado de preto, apoio lombar nos dois sentidos, ajuste de asa e sistema de aquecimento e de ventilação; “Competition Sport”, claramente indicada para uma pilotagem ao nível dos track days, que inclui reforços agressivos, superfícies integrais dos assentos em couro Napa, acabamento em fibra de carbono no apoio da cabeça, sistema de aquecimento e de ventilação, e um novo tecido extremamente durável, inspirado nos coletes Kevlar. A completar o ramalhete do interior, estão as belíssimas colunas de som Bose revestidas de metal, uma delas na zona central entre os encostos dos bancos. Existem alguns espaços ergonómicos para arrumos, entre os quais um compartimento útil para um smartphone.

O novo Corvette vem equipado com os quatro modos de condução provenientes da anterior geração – Weather, Tour, Sport e Track – a que se juntam dois novos modos: o MyMode, que configura de modo mais personalizado os diferentes parâmetros comportamentais do carro, e o modo “Z”, cujo botão se encontra no volante e que eleva o modo MyMode a uma gama de opções mais agressivas. A fim de melhor controlar o elevado binário, o C8 vem equipado com um diferencial eletrónico de deslizamento limitado, integrado no sistema de transmissão, que alterna o binário entre as duas rodas traseiras para uma melhoria substancial da estabilidade do superdesportivo.

Para além da versão coupé, estará também à venda a versão convertible, pela primeira vez com hardtop retrátil. No fundo, este tipo de carroçaria pode ser configurado como se de um coupé de tratasse, cujo tejadilho ser recolhido mecanicamente na zona traseira do veículo através da abertura do compartimento onde está alojado o motor traseiro quando se deseja andar com os cabelos ao vento.

Nos EUA, o Corvette C8 Stingray está disponível com um preço a rondar uns bem acessíveis 60 mil dólares, não sendo certa a sua vinda para Portugal, pelo menos a nível oficial, uma vez que a marca Chevrolet já não se vende por cá há já alguns anos. A nova geração de um dos maiores ícones da história do automóvel consegue já bater, com alguma margem, a atual geração do Porsche 911 Carrera, e até o Ferrari Portofino (cuja potência é cerca de 100 cv superior, mas mais pesado), em velocidade pura. Se uma versão básica já consegue este feito, então imagine-se com as seguintes versões Z06 e ZR1 que entretanto poderão vir. Uma coisa é certa: em termos de solidez, sofisticação e grau de engenharia, este novo Corvette é o passo decisivo para se tornar num sucesso absoluto de vendas um pouco por todo o mundo, suplantando todas as gerações anteriores. As restantes marcas premium de superdesportivos, que se cuidem. A grande questão, contudo, será perceber se os americanos aderem a esta nova configuração de motor, que oferece óbvios benefícios face ao conceito cada vez mais agressivo de superdesportivo que o Corvette adotou.

Por último: a versão de competição do Corvette C8 (C8.R) para as corridas de endurance do tipo Le Mans fez uma estreia bastante positiva nas 24 Horas de Daytona de 2020…