Confesso que não é muito fácil compreender a história dos últimos anos de uma marca automóvel sueca que foi capaz (até certo ponto) de rivalizar com a sua congénere Volvo, a Saab Automobile. Como foi possível a Saab AB (originalmente Svenska Aeroplan AB), com altos padrões aeronáuticos e tecnologia multifacetada amplamente reconhecida em todo o mundo, deixar-se levar pelos dólares americanos, ao vender a sua subsidiária automóvel a um grupo mundial norte-americano chamado General Motors (vulgo GM), que mal sabia cuidar das suas marcas caseiras? Havia mesmo a necessidade de venda, apesar de algumas dificuldades financeiras? Para melhor se analisar a história da marca, sugiro-vos que vejam o seguinte vídeo, antes de prosseguirem com a leitura deste artigo.
É ponto assente que, sobretudo a partir da aquisição total da firma sueca por parte da GM no ano 2000, a componente tecnológica ficou estagnada, sem contudo haver degradação da qualidade de construção, de design e de segurança, nem o esmorecimento da inspiração aeronáutica, itens comprovados nos modelos 9-3 e 9-5. A crise económica mundial que rebentou no final da primeira década do século XXI obrigou a debilitada GM, em 2010, a entregar a Saab a uma firma de automóveis holandesa que também teve um passado aeronáutico: a Spyker.
Em 2011, a Spyker tentou, através de uma sociedade com capitais chineses denominada Swedish Automobile, comprar a empresa por 100 milhões de euros, contando com planos de investimento de 610 milhões de euros e ainda um empréstimo de 400 milhões de euros do Banco Europeu de Investimento com aval do governo sueco; contudo, o bloqueio da GM devido ao perigo de fuga da sua tecnologia para o mercado chinês onde estava a apostar forte, bem como as avolumadas dívidas da Saab Automobile, que culminaram na paralisação da produção na fábrica de Trollhättan e consequente bancarrota, provocaram um aborto do negócio, seguido de um pedido de insolvência por parte dos administradores judiciais da empresa face à impossibilidade de utilização da tecnologia GM, pouco tempo antes da apresentação de um protótipo promissor – do qual falarei já se seguida – que ensaiaria a base para os novo Saab 9-3 e Saab 9-3X (e não só). Em Agosto de 2012, foi uma nova sociedade, a National Electric Vehicle Sweden (NEVS), formada por um consórcio sueco-chinês liderado pelo chinês Kai Johan Jiang, a adquirir todo o espólio (incluindo as dívidas), exceto a tecnologia GM e os direitos de utilização da marca que ficaram vedados em 2014 pela Saab AB quando ficaram evidentes as dificuldades financeiras da nova sociedade. A NEVS, que entretanto se prepara para fabricar uma nova versão do modelo 9-3 totalmente elétrica, anunciou em 2016 que deixaria em definitivo de associar a marca SAAB aos seus modelos de propulsão totalmente elétrica, passando a aplicar a marca NEVS.
A empresa Saab Automobile, tal como a conhecemos, nasceu em 1945 com o protótipo Ursaab concebido por 15 engenheiros aeronáuticos da casa-mãe, e morreu oficialmente em dezembro de 2011. Contudo, a marca SAAB (termo e atual logótipo que inclui o famoso grifo desenhado no período em que a Saab e a empresa de veículos pesados Scania estiveram juntas), essa continua a persistir no seio da Saab AB, aplicada aos ramos da aeronáutica e da defesa militar (SAAB Technologies), atividades que estiveram na sua génese. O que deixa no ar a possibilidade de a casa mãe criar uma nova empresa automóvel exatamente com o mesmo nome. Mas, por enquanto, tudo não passa de mera especulação. Resta saber por quanto tempo…
Recuemos agora até 2011. A Saab Automobile, agora sob a alçada da Spyker Cars, tinha contratado ainda em 2010, pouco tempo depois da sua saída do universo GM, o norte americano Jason Castriota, um promissor designer que já trabalhara para a Pininfarina e tinha assinado outras obras marcantes tais como o famoso exemplar único Ferrari P4/5 by Pininfarina (2006), o Ferrari 599 GTB Fiorano (2006), o Maserati GranTurismo (2007), o SSC Tuatara (2010), o Bertone Mantide (2010), e ainda ensaios de estilo tais como o Maserati Birdcage 75th e o Rolls-Royce Phantom Drophead Coupé. Numa fase em que nem tudo era rosas para a firma sueca, Victor Muller, o novo CEO da Saab que já desempenhava a mesma função também na Spyker, abordou-o durante o Salão de Genebra de 2010, desafiando-o a construir um protótipo totalmente novo, que rompesse com a nefasta ligação à GM e que trouxesse uma nova linha de estilo que conjugasse o futuro com a herança aeronáutica trazida pelo primeiro protótipo da história da marca, com um toque de desportividade, de modo a preparar uma nova plataforma para o sucessor do já idoso 9-3 e seus derivados. Tal protótipo representaria uma autêntica “fénix renascida” que iria catapultar o sucesso da marca para níveis históricos, com um incremento importante de tecnologia não-GM. O desafio não era fácil, ainda mais com os cada vez mais escassos recursos viáveis para o funcionamento da firma de Trollhättan. Contudo, a fonte de inspiração não podia ser outra e, de certo modo, facilitou o trabalho ao já reputado designer. Face à aura natural da Saab e à necessidade de rejuvenescimento, o resultado foi o renascentista PhoeniX!
Este protótipo é talvez dos mais belos de toda a história de protótipos do mundo automóvel. Lembro-me, quando o vi numa das muitas revistas periódicas que comprei, de ter exclamado algo do género como: “Este protótipo é lindíssimo, agora imaginem como serão os futuros Saab!”. Tudo parecia encaminhar-se na direção certa e, naquele momento, esqueciam-se todos os problemas que a Saab viveu. Daí que eu, tal como muitos entusiastas da marca e não só, tenhamos ficado estupefactos com a súbita agonia irreversível da empresa.
O protótipo foi oficialmente apresentado em Abril de 2011 no Salão de Genebra. Foi equipado com uma motorização híbrida, composta por um motor turbo a gasolina 1.6 THP de 200 cv fabricado pela parceria BMW/PSA montado transversalmente no capô frontal, e por um motor elétrico de 34 cv, montado em cima do eixo traseiro, mesmo por baixo do versátil compartimento da mala. Em condições normais, caso fosse um modelo em fase definitiva, teria prestações aproximadas de 230 km/h, com um consumo combinado de apenas 5 l/100 km e 119 g/km de emissões nocivas. Especulou-se que os futuros modelos da marca sueca iriam utilizar motores BMW, o que até não seria descabido tendo em conta a natural competência ao nível da performance e da fiabilidade, rompendo pela certa com os motores de tecnologia GM. A nova plataforma PhoeniX, escondida debaixo da carroçaria de aspeto ondulado e predominantemente metálico, é vagamente baseada na antiga arquitetura Epsilon da GM, que pode ser encontrada no atual 9-3. No entanto, na sua transformação para PhoeniX, a plataforma de tração dianteira foi esticada, ampliada e rebaixada. Um novo eixo traseiro foi instalado, juntamente com muitas outras atualizações tecnológicas. Com a criação da nova plataforma, a Saab planeava cortar custos através da partilha de componentes em vários modelos, reduzindo tempos de produção e custos de engenharia, com redução óbvia dos custos de produção, já que vários modelos poderiam ser construídos a partir da mesma linha de produção. Esta filosofia é hoje seguida por uma fatia importante de construtores automóveis, isto sem falar da partilha de componentes entre duas ou mais marcas resultantes de alianças estratégicas de mercado.
De linhas futuristas que rompem com a monotonia dos últimos anos, tão fluentes como as do protótipo Ursaab que marcou o início da aventura automóvel da Saab, tal como o projeto nascente foi buscar claramente inspiração à indústria aeronáutica, aquilo que a Saab chama de “aeroemocional”. De tal modo que até o símbolo da aeronave patente num logótipo antigo da marca está marcado em vários pontos do concept: na zona superior da secção dos farolins traseiros (iluminado a vermelho tal como as luzes que a compõem), no centro das jantes e no centro do volante aeronáutico. As jantes em forma de hélice de motor de avião reforçam a ideia de que se trata de um novo marco que faria a marca levantar bem alto para o futuro.
O Saab PhoeniX Concept assume a forma de um Grande Turismo de duas portas em forma de coupé, com uma configuração de lugares de 2+2 (dois lugares normais à frente e dois lugares mais pequenos atrás). Todo o carro foi esculpido para obter a menor resistência ao ar, no que resulta num coeficiente aerodinâmico de apenas 0,25. O protótipo conta com a ajuda de dois winglets, uma em cada parte lateral da zona superior das janelas que se estende desde o pilar A até ao pilar C, com claro objetivo de criar a necessária sustentação aerodinâmica. As portas, que se estendem até à zona do tejadilho e cujo vidro se estende até aí, abrem em formato de borboleta, à semelhança de alguns superdesportivos, o que abona a favor do seu caráter desportivo.
Todo o tejadilho apresenta uma linha homogénea em tom negro que termina na secção traseira que detêm o já falado símbolo do avião iluminado. A secção dianteira do carro contém uma grelha frontal que iria marcar os futuros modelos 9-3 e, eventualmente, o sucessor do último modelo fabricado da marca (9-5), com a zona central semi-elíptica com um traço numa zona mais superior, onde cabe o logótipo SAAB (dispensando já o grifo), ladeado por dois faróis em Full LED traçados em cima pela linha inferior do capô do motor e, em baixo, por duas linhas provenientes das zonas laterais do mesmo capô que são interrompidas pela linha elíptica da grelha central. O mesmo material perfurado que cobre a grelha é o mesmo que cobre a entrada de ar, onde cabem duas luzes pequenas de nevoeiro, também em Full LED. A base do parachoques dianteiro é em linha reta, com uma saliência central que facilita o fluxo do ar para o fundo do carro.
Na zona lateral, a zona das cavas das rodas de perfil helicoidal tem um corte plano, uma outra artimanha que contribui para o baixo coeficiente aerodinâmico do modelo. Na base das portas existe uma saia lateral com duas lâminas que ajudam a direcionar melhor o ar para uma maior sustentação aerodinâmica. As duas lâminas continuam o seu curso até às saídas laterais de ar do parachoques traseiro, apenas interrompidas pelas cavas das rodas traseiras. Toda a zona traseira funciona como um todo, onde a secção superior é impregnada de dezenas pontos luminosos em vermelho, criando uma geometria homogénea de iluminação, com o desenho da avioneta colocado em cima, numa forma de trapézio isósceles. A mesma forma de trapézio também está presente, numa dimensão bem maior, na zona inferior do parachoques, dividida em duas secções por uma linha que está perfeitamente alinhada com a linha das saídas laterais de ar: a secção superior alberga as duas ponteiras de escape estilísticas e metálicas, ao passo que a secção inferior faz o papel de extrator do ar que circula por debaixo do carro.
Tal modelo não foi desenhado com espelhos retrovisores nem com puxadores das portas, pois afinal tratava-se de um novo ensaio de estilo. O que não beliscou a sua extrema beleza e robustez exterior.
O interior, ainda que com claro aspeto de protótipo, tem como um dos grandes destaques o volante de forma quase retangular, com a zona da pega – revestida em grande parte por pele cosida a vermelho – claramente inspirada na aviação, onde se insere o símbolo da avioneta da Saab na zona central. Os bancos, de estilo claramente desportivo, foram forrados a vermelho. A zona do painel de instrumentos, claramente envolvendo o condutor, contém mostradores exclusivamente digitais, ainda que de aspeto um pouco rudimentar, o que dava uma pista sobre o tão esperado upgrade tecnológico da marca. Mais importante ainda: a Saab estreava mundialmente um sistema de infoentretenimento e de comunicação suportado pelo sistema operativo Android (da Google), neste caso denominado de IQon, que incorporaria o mesmo software dos smartphones. Depois deste ensaio tecnológico, a generalidade das marcas passou a instalar sistemas semelhantes até aos dias de hoje. De resto, o interior pouco mais tinha de funcionalidade, tais como as manetes tradicionais montadas na coluna da direção, e na consola central a alavanca de velocidades com desenho pouco inovador e dois botões a simular as funções de climatização. Estilisticamente e tecnologicamente falando, o PhoeniX apresentou um interior que deixou água na boca especialmente aos entusiastas da marca, à semelhança do exterior, pese embora o aspeto meramente conceptual.
O PhoeniX, que tinha o propósito de inaugurar uma nova era promissora na história da marca, acabou por ser a última cruzada. Com bastante estilo, diga-se de passagem. Em última instância, foi a GM quem deu a machada final da história de uma marca automóvel que foi capaz de produzir modelos tão icónicos como o 92, o 95, o 96, o 99, o 900, o 9000 (produto da parceria com o Grupo Fiat) e até o famoso desportivo coupé Sonnet. Uma marca que foi capaz de introduzir tecnologias inovadoras, apesar de sofrer com as comparações com a sua congénere Volvo. Foi também das primeiras marcas automóveis a apostar nas provas desportivas de rali como meio de teste das suas competências técnicas, e chegou mesmo a vencer o Rali Monte Carlo (em 1962 e 1963). Foi mesmo a primeira marca a democratizar a utilização do turbo em automóveis de estrada, sendo também a primeira marca a vencer um rali com motor turbo (em 1979).
Aqui fica um resumo, por ordem cronológica, de todas as inovações tecnológicas da Saab que marcaram decisivamente a evolução a indústria automóvel no capítulo do conforto, fiabilidade e segurança:
1962 – Primeiro construtor automóvel a introduzir os cintos de segurança como padrão (item de série) nos seus carros;
1969 – Introdução dos faróis automáticos que eram ligados ou desligados com a ignição, evitando assim o risco de descarregamento da bateria; introdução da chave de ignição entre os bancos dianteiros;
1970 – Lançamento dos limpa-vidros nos faróis;
1971 – Introdução dos parachoques auto-reparáveis para colisões de até 8 km/h; introdução dos bancos dianteiros aquecidos;
1972 – Primeiro construtor automóvel a introduzir barras de proteção reforçadas nas portas para uma maior proteção em caso de impactos laterais;
1976 – Pioneira em desenvolver um motor turbo com a durabilidade e confiança para a utilização diária.
1978 – Introdução do filtro de ventilação da cabine interna do veículo, diminuindo assim as alergias provocadas por poeira e pólen; introdução da coluna de direção retrátil;
1981 – Introdução dos espelhos retrovisores externos com seção convexa, eliminando o chamado “ângulo morto”;
1985 – Introdução do sistema de ignição direta, eliminando assim os cabos e o distribuidor;
1991 – Introdução do ar-condicionado sem CFC;
1993 – Introdução do banco “Safeseat” com um complexo sistema de segurança;
1996 – Introdução do sistema SAHR que em caso de colisão dianteira posiciona o banco de forma correta controlando todos os movimentos da cabeça e da coluna;
1997 – Introdução dos bancos ventilados.
Pelo bom contributo que deu à indústria automóvel, ao invés do triste fim a que foi votada, a Saab Automobile merecia uma medalha de honra. Restam ainda as bastantes recordações que ainda circulam na estrada e as que estão patentes no museu da marca em Trollhättan. Haverá algum dia o tão esperado regresso da penumbra? Saab AB, pensa nisto!
Muito obrigado Saab! Que não seja um adeus definitivo, mas um até já…